quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Meus caseiros II - 112

  

O outro é o Seu Adílio.  Tomás adora ele.  Os dois se chamam por Nego Duro.

Seu Adílio é mais mineiro, mais dissimulado que seu Antônio.  Nunca diz, na lata, o que quer.  A gente tem que tentar decifrar o que está por trás das falas dele.

Outro dia, a Clotilde, a javaporca do Meu Sítio, pariu.  Ele liga pra Gêisa e fala:
-  A senhora não vai nem acreditar...
Gêisa, que estava esperando a notícia do parto, insistiu, perguntando quantos porquinhos haviam nascido.
E seu Adílio, inabalável:
-  A senhora não vai nem acreditar...

O rumo da prosa manteve-se inalterado, até a hora em que a gente estacionava o carro no Meu Sítio.  Seu Adílio lá, em pé ao lado da pocilga, repetindo orgulhoso enquanto Gêisa contava os nove bacurinhos que haviam nascido:
-  A senhora não vai nem acreditar...

Seu Adílio é um relógio.  Como ele mora em Cachoeira da Prata, chega todo dia às oito horas e sai às quatro e no domingo sai ao meio dia.  Só que, pra nós da cidade, quatro horas é a hora em que sai o almoço.  Bicão, seu Adílio sempre agradece quando Gêisa chama ele pra tomar o café da manhã conosco.  Hesita um pouco e emenda, logo em seguida, sua ladainha preferida:
-  Então me dá só uma provinha...

O auge dele foi uma vez que nós matamos uns três porcos e Gêisa passou o final de semana na maior animação, preparando carne de panela pra nós.  Foi dando a hora de ir embora e seu Adílio rondando por ali, inventando desculpa pra atrasar o caminho de casa.

-  Cheirando bão! escuto ele falando.  Não entendi direito o comentário e ele repete:
-  Cheirando bão!

Era a senha dele, dizendo que gostaria de provar a suã que cozinhava no fogão de lenha.

Seu Adílio é meu mestre de delicadeza.  Sempre fala o que quer.   Mas sempre do seu jeito cuidadoso, pra não ultrapassar o limite.  E, claro, pra nunca ter um não como resposta.  Acabei incorporando isto na minha vida.

-  Cheirando bão!, digo eu toda vez que quero invadir a cozinha pra pegar uma prova do que Gêisa prepara o almoço.



terça-feira, 28 de setembro de 2010

Sorveteria Valente - 111



De novo, meu talento pra transgressão.
É que eu andei tomando esporro a torto e a direito lá na hemo por causa deste tempo seco que havia pairado por Belo Horizonte.

Qualquer coisinha, minha boca ansiava por um cadinho dágua.  Só que ansiava o dia inteiro.  Babava mesmo...

E o resultado não podia ser diferente.  Chegava no dia da diálise eu tinha que tirar uma quantidade absurda de peso.

Primeiro, eu inventei uma mutreta.  Light.
Era só andar com uma garrafa dágua, encher a boca e, depois de bochechar, cuspir fora.  Melhor ainda quando deixa a garrafa congelando e vai fazendo isto à medida que o gelo liquefaz.
Tá bom, eu concordo.  Bonito, bonito, não é não.  Quem estava perto sempre olhava, achando esquisito.
Mas resolve meu problema direitinho.

Aí entra o genial da história.  Criei a Sorveteria Valente.
Deixo as frutas que eu posso no congelador e vou comendo[1] aos poucos.  Dá pra fazer com melancia, com maçã, com uva, caju, kiwi, morango.  E quando mais calor ou mais seco o tempo, mais delicioso.

O inconveniente é que agora o congelador aqui de casa fica parecendo um sacolão.  Os meninos chegam procurando fruta e tá tudo congelado.  Como meu problema não é o deles, só eu que fico feliz com aquela quantidade de coisa petrificando.

Acaba que só eu tenho motivos pra comemorar...

 


[1] Talvez “roendo o gelo” fosse mais adequado.  Fica com a consistência de um picolé.

sábado, 25 de setembro de 2010

Nossos comerciais, por favor

Raquel, da Ícone Vídeo, chegou tarde com Marcinho e os meninos e deixou este presente pra nós.

Beijos, Raquel

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Bombou!!!


Depois dou mais detalhes.
É que o Digo já postou no Facebook e eu não podia ficar pra trás.

Briga boa - 110



Outro dia, descobri o site da Márcia Cabrita, a Neide Aparecida, que era a doméstica do “Sai de baixo”.
Está no mesmo estágio que eu.  Só que, com uma vantagem. 

Pra você.  

Ela é profissional.  Engraçada do começo ao fim quando fala de seu sofrimento.  Adorei o astral dela.  Assim não se dá chance pra doença tirar onda, ficar assustando a gente.

Tipo da companheira boa pra gente comprar uma briga assim...

Foi com ela que eu aprendi que meu estágio chama remissão.  Quer dizer, o câncer não se manifesta mas eu só posso me considerar curado se passar um bom tempo[1] sem que meu corpo dê notícia do tumor.

Márcia trata o câncer como se fosse Pluft, o fantasminha, o personagem da Maria Clara Machado[2], que tinha medo de assustar as pessoas.  Acho bom, ele fica bem enquadradinho, no lugar dele...

Mas recomendo vivamente você passear pelo site dela.  Uma, que a forma que ela define remissão virou meu benchmark.  Diz ela que “os exames apontam que você está boa, nem um sinal da doença, mas não dá pra sair correndo dizendo que se está curada”.  Fiquei desse jeitinho, quando o Xande me falou do resultado da tomografia.

E fora isto, ela é compulsiva pra escrever bobagem.  Ler o blog dela dá a impressão de você estar assistindo uma apresentação de standup.  Estava louca pra usar um lenço colorido,...  no pescoço[3].  Ou o dia em que, loca, se apaixonou pelo anestesista.

Da minha parte, Cabrita, resolvi que tem que ser assim também.  Ele também não leva meu bom humor!
"Que medo, que coragem! Nem sei!"

ps:  Estou saindo pra Praça da Liberdade.  Nos vemos lá.  Você, eu e a Lua




[1] Algo como cinco anos, o Leco tinha me falado, pra eu me candidatar ao transplante.  Fora isto, eles consideram jogar o rim fora, me transplantar e correr o risco do câncer voltar...

[2] Tia da Lina, da Júnia, da Flávia, da Luíza, da Adriana.  Esse Dr. Lucas era o maior fabricante de avião que eu já conheci!  Benzó Deus...

[3] Pra quem está fazendo quimio, a ligação é rapidinha...

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Edição Extraordinária 28 - Quase um estagiário

  
  
Já foi mais limpeza, dessa[1] vez.
Em três tardes resolvi tudo.
Estou a um passo de voltar à velha forma.
Mas ainda assim, INSS, continua sendo só inventação de moda...

  
  
[1]  Guguta fala que eu nunca sei quando usar nesta ou nessa.  Tô nem aí...

Edição Extraordinária 27 - Last chance


Eu já havia falado isto aqui.
Mas adoro lembrar.
Continua meu gosto por celebrar a vida, continua meu gosto por lembrar do Herval, das histórias do João Lara e, principalmente, do susto que a Gêisa leva, quando acorda de manhã.

É que hoje é a última chance que você tem de me ver com barba.  Meu compromisso com a vida, acho, é a coisa que eu mais levo a sério.  É o que eu quero deixar de herança pros meninos.

Agora, doido mesmo foi o presente que o Neguinho, filho da Ia, minha irmã, mandou pra mim.
É a foto do Antônio Coelho, da primeira leva dos Coelhos que chegou no Morro do Pilar, direto de Portugal, descendente direto de Manoel Rodrigues Coelho que, na segunda metade do século XVIII (1774), começou a espalhar a gente por Minas Gerais.

E tome Coelho em Santa Bárbara, Itabira do Mato Dentro, Serro e Virginópolis.  O filho do Manoel, José, casou-se com Eugênia Maria da Cruz e foi morar no Morro do Pilar[1], nas margens do Ribeirão Axupé.  Foi aí que nasceu o Antônio, em 22/01/1829.
Daí,no começo do século XIX, transferiram-se para as terras banhadas pelo Ribeirão Graipu, onde se formou o Arraial de São Miguel e Almas, hoje Guanhães[2], e deu no que deu.

Agora, na boa, fala se não sou a cara do bruto.  Fala...!!!

  
  




[1] Gentil, pai da Gêisa, é Coelho da Silva e nascido no Morro do Pilar.  Na minha família a gente costuma dizer que “quanto mais prima,...”

[2] Tá lá, na página 7 do livro “Arvore Genealógica da Família Coelho”, da Ivânia Batista Coelho, impresso na Gráfica Fiel, ano desconhecido.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Edição Extraordinária 26 - Aqui não, Xexênia!


Lua cheia chegando, lá vamos nós pra outra quebradeira.
Dia 23 de setembro, quinta feira,  vai ter a NefroWalker  -  I Volta da Praça da Liberdade na Lua Cheia.
Legal que cai justo na Semana Nacional da Luta em prol das Pessoas com Deficiência.

Vai funcionar do mesmo jeito da I Volta da Lagoa Seca.  Mais ou menos 20:00 horas a gente se encontra e vai pra umas duas ou três voltas em torno da Praça da Liberdade.  Aí, descansa

Seu Zé, meu vizinho na hemo, vai fazer uma serenata pra lua.  Como eu não consegui arrumar tomada pro amplificador, vai ser tudo no gogó.  Aí, você leva seu violão e ajuda no coro.

É um evento fechado pra pacientes renais crônicos, pessoas em seus variados graus de deficiência e simpatizantes.
Quer dizer, o seu perfil exato.  Você encaixa como luva.

Passa lá!

Meus caseiros - 109


Metade da graça de um sítio é o caseiro.  Ele pode transformar o lugar num pedaço de paraíso ou fazer sua vida virar um inferno.
Nós já vivemos os dois, no Meu Sítio[1].
E, com os dois, é um aprendizado atrás do outro.
Dos ruins, eu esqueço logo.  É que a lembrança dos bons é tão legal que a gente nem lembra dos outros.

Seu Antônio Casemiro mora lá do lado.  Foi caseiro e, até hoje, dá apoio nos casos de pânico.  Seu Antônio é um sábio.  Nas horas vagas dele, ficava virando a terra.  Quando eu perguntava o que ele estava fazendo, ele respondia que estava procurando um diamante.  Diante da minha incredulidade, ele dizia:
-  Eu já procurei ali, ali e ali.  Nunca achei nada.  Ele tem que estar é aqui!
E continuava revirando a terra, como se procurasse um recibo em uma mesa bagunçada.

Ele era doido comigo.  Pra me agradar, plantou uma fila de melancia na horta[2].  Passado algum tempo, eu cobrei cadê as melancias.  Sem se avexar, seu Antônio falou, tranquilo:
-  Deu pepino!
Por alguma razão, que ele desconhecia, a terra havia teimado de me dar uma coisa no lugar da outra.  Nunca havia passado pela cabeça dele que ele trocara o pacote de sementes.  Ele simplesmente não entendia o que havia acontecido. 
Deu pepino, pronto e acabou.

A única coisa que me incomodava um pouco era que ele nunca podia ficar um minuto depois das 5 da tarde.
Por que, Seu Antônio?
-  É que depois daquela curva, todo dia aparece uma dona, fantasma, pra atentar a gente depois das 6.
E o senhor já viu ela?
-  Cê é bobo?  Eu não passo ali neste horário...

Um dia, arruma um tempo pra ir lá só pra conversar com Seu Antônio.  Guimarães Rosa adoraria...




  
[2] Seu Antônio ficava tão orgulhoso com a horta, que chamava ela de Ceasa.  Dizia ele pra Dona Gêisa, antes do almoço: 
-  Espera só um pouquinho que eu vou na Ceasa pegar uma salada pra senhora.
E voltava, todo prosa, com alface, rúcula, tomate, cenoura, ...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Limites - 108


Se tem uma coisa que tira meus meninos do sério, é você ficar me tietando.
Ah, que eu sou engraçado, ah, que eu sou legal, ah, que eu sou blá blá...
A resposta, invariavelmente é:
-  Vai morar com ele!

Eu mesmo fico um pouco sem paciência quando Guguta fala que eu trato do meu câncer como se fosse uma unha encravada.
Eu é que sei dos meus medos e o quanto me custa segurar esta onda.

Hoje, quando abri meu emails, me deparei com um recado do Ives, meu personal chef de cuisine, falando de uma pessoa transplantada, Kelly Perkins, que fazia do alpinismo militância pela doação de órgãos.
Vai lá pra ver.  No mínimo, a história dela é MUITO interessante:

Depois que fez um transplante de coração, a louca danou a subir montanha.  Mas nada de desafiozinho primário, que nem George Mallory, que justificou seu interesse em subir o Everest com a frase que o tornaria célebre, em 1924, pouco antes de morrer, engolido pelas neves:  “Porque está lá.”

Kelly vai subindo, sempre pra celebrar.  E a adversidade virou o grande motor da história.  
Subiu o Monte Fuji, no Japão, pra comemorar a legalização do transplante de coração por lá.
Subiu o Kilimandjaro para celebrar os progressos médicos conseguidos desde o primeiro transplante de coração, em 1967, na África do Sul.
Que nem o Amir Klink, que resolveu remar porque apareceu com um problema nos ossos da mão.  E foi fondo, foi fondo e deu no que deu.

A parte mais legal que eu achei foi quando ela fala que o doador passou a fazer parte da vida dela.  E que ela sente meio que tendo um compromisso de mostrar que valeu a pena o coração ter vindo pra ela.  Faz tudo pra honrar a doação, sendo positiva.

Fiquei lembrando do Geraldo Amarelo e da Ana, que estão na bica de ganhar um rim novo.  E do Ives, claro, que ganhou o dele e celebra isto sempre...

Falando nisto, todo final de setembro ocorre uma campanha nacional pela doação de órgãos.  Deixe claro pra sua família sua disposição de doar os seus.
Nós todos agradeceremos.


sábado, 11 de setembro de 2010

Aqui tem tudo! - 107



Devagarzinho, vou perdendo todos os meus bens...
Curto e grosso, minha fortuna está toda indo pro saco.  Ou, melhor dizendo, pro saco do Tomás.

Começou com uma cisma dele que o Meu Sítio não podia continuar com este nome.  E que ia ser chamado, a partir de agora, de Fazenda do Cowboy Xonado.  Pergunta se sou eu o Cowboy Xonado.  Pergunta...
Claro, advogando em causa própria, o tal Cowboy Xonado é ele mesmo.  Lá foi Meu Sítio embora.

Quando Quênia, minha égua mangalarga chegou, Tomás olhava pra ela, extasiado.  Antevi problema quando ele me perguntou:
-  A égua é sua, vovô?
Os olhos dele brilhavam, com razão.  A égua era linda com força.  Cadê que eu tive coragem.  Respondi, meio que perguntando, hesitante:
-  É de nós dois, Tomás?
Ele aceitou a negociação no ato, mas só na primeira semana.  Passada a primeira semana, declarou, categórico:
-  A Quênia é só minha.

Claro, como eu sou um banana quando o assunto é discutir com Tomás, acatei a decisão no ato, achando a lógica, inclusive, muito correta e pertinente.
Deve ter sido assim que, na minha fantasia, os príncipes declaravam independência e se apropriavam dos grandes impérios da história da humanidade...

Agora Tomás deu pra querer morar no Meu Sítio[1].  Gêisa, mais sensata, dizia pra ele da dificuldade de se encarar esta mudança, assim, tão radicalmente.
-  Mas como é que você vai fazer com o Clic?
Clic é a escolinha dele.

Tomás ficou pensativo por alguns instantes mas, pouco tempo depois, me chama pra visitar duas inovações que Dona Gêisa havia promovido.  Um berçário, no galinheiro, pra cuidar dos pintinhos e um outro, na pocilga , onde os bacurinhos ficavam até adquirir um pouquinho mais de peso.
Tomás me apresenta:
-  Aqui, vovô é o Clic dos pintinhos e ali o Clic dos porquinhos.
E concluiu, todo orgulhoso com o seu reinado:

-  Agora aqui tem tudo, não tem, vovô?
  
  

[1] Meu, dele, bem claro...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Edição Extraordinária 25 - Karatê Kid


Meu irmão me mandou uma família de Alabama’s White Cock pro Meu Sítio.
Tudo bem. Tampouco eu jamais havia ouvido falar deste bicho.
A história é complicada. Tem até uns traços de biopirataria.
Márcia tinha ido visitar Emília, que morava no Alabama e se encantou com os bichinhos.  Os ovos, galados, vieram dentro de uma garrafa térmica pra sobreviver à pressurização do voo (1) .
No final, a Fazenda Paraíso estava com a mais bela criação de Alabama's de Plautino Soares, MG.
   
Ganhei uma família inteira. Uns dois machos, umas cinco fêmeas e uns cinco pintinhos. Chegou no Meu Sítio, já tinham mais três ovos. Galados, eu espero.
  
Não sei se quem me deu estava pensando nisto, mas o Alabama’s White Cock é a cara da Dona Gêisa. Baixinho, criador de caso. Chegou, já é dono do terreiro.  Tomás e eu jogamos milho e eles, certeiros, comem tudo, antes dos outros. Até as angolas ficam receosas, quando eles entram na roda.
   
Eles, precisos, pegam o milho quando ainda nem chegou no chão. Fiquei impressionado com a rapidez do bote deles. As outras galinhas ficam sem entender direito o furacão que acabara de passar, levando os grãos.  Imagina o que eles não fazem com cobra ou escorpião. Ficam ali, ciscando cúmplices com a dona da casa, que lhes dá a maior cobertura.
  
Fico só olhando, apaixonado, onde é que foram descobrir um bichinho tão parecido com Dona Gêisa.
Doce, mas não se engrace com ela não, porque o pau quebra...

  
  
(1)  Todo mundo mete a borduna no Acordo Ortográfico mas ninguém lembra de agradecer o tanto de Shift + ^ que a gente vai deixar de digitar.
Mó economia, bacana. No final do dia, economizei o suficiente pra digitar uma página...


 

ps:  Deu um pequeno mal entendido, com algumas leitoras deste blog ficando sem entender qual era o galo Alabama’s, no final das contas.  Coloquei as setas, a posteriori, pra não restar dúvidas!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Edição Extraordinária 24 - Parabéns pra vocês


Como eu só volto na quarta, estrago a minha surpresa...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A grande ausência - 106


Fiquei o tempo todo, igual namorada adolescente, ansiando pro Paulinho aparecer na I NefroWalker da Lua Cheia.  Fazia minhas voltas, olhando de banda, doido pra ele surgir do nada, célere, com sua cadeira turbinada.
Paulinho foi o primeiro deficiente físico que eu me lembre a exigir pra si uma vida normal.  À época, como não existia esta coisa de politicamente correto, o nome era Paulinho Muleta.  Ia sempre na PUC, participar de alguma aula com nosso herói, um anjo barroco, o Romu. 

Chegando lá, era um parto.  Lá ia todo mundo, se borrando de rir, carregando Paulinho e suas muletas até o terceiro andar da Comunicação.  Um canalha, adorava sacanear a gente, pedindo pra segurar as muletas, só pra ver a gente desconfortável, carregando aquele incômodo, que a gente fingia não sentir.

Daí, como você não teve a oportunidade de conhecer esta figura, eu te apresento.  Aliás, apresento ele e a Rede Saci, que publicou este texto, que eu acho revolucionário até hoje, pra quem briga por esta história de inclusão social.
Acho um primor, a confusão que ele criou...

Memórias. Corria o ano de 1981. O general Figueiredo governava o Brasil, distribuindo coices e promessas de abertura política. A economia transitava entre o milagre e a nova crise que se desenhava. Casado havia três anos, e com a carreira de professor bem encaminhada, eu não gastava esforços com pessimismo ou queixas. Minhas energias pareciam bem distribuídas, os focos estabelecidos. Mas, quem controla a própria vida? O amanhã só tem graça por estar sempre prenhe de surpresas. "Previsível de verdade só a morte", insinua a sabedoria popular.
   
Já desisti de tentar saber a origem primeira do convite que, naquele ano distante, iria bulir com minha existência e meus interesses. Fui convidado para dar uma palestra no grande evento que marcaria aquele como o ano internacional das pessoas com deficiência, promovido pela ONU e outras entidades. O evento seria realizado no monumental, mas hoje finado, Hotel Nacional, no Rio de Janeiro. Aceitei por instinto, a tremedeira deixei para depois. Porque eu? De deficiente eu só tinha a longa, e bem sucedida prática (modéstia à parte). Nunca sistematizara, ou fizera teoria, sobre o que este aspecto secundário de minha vida impusera à minha consciência e à minha sensibilidade. O tema que me encomendaram era algo como "barreiras arquitetônicas" e urbanísticas com que se deparam os deficientes. A ansiedade quase que só me deixou rabiscar umas idéias gerais.
     
O tempo correu lépido e distraído. Logo eu estava lá, instalado num luxuoso apartamento com vista para a praia de São Conrado. O Centro de Convenções, no próprio hotel, parecia um aeroporto internacional ou a portaria da ONU: gente de todo tipo, línguas e roupas para qualquer gosto. De cara, fui atacado pela pulga atrás da orelha: tinha deficiente de menos naquela festança. Não estaríamos os deficientes aptos, ou preparados, para expor nossos planos e experiências? Mas logo eu descobriria que realmente não estávamos. Desde a abertura dos trabalhos, ficou claro que o clima de tutela seria preponderante, e não por malvadeza ou picaretagem dos organizadores, mas porque simplesmente não havia, naquele tempo, outro caminho. Um pensamento "dos" deficientes só foi construído daí para frente, e duramente.
   
Vi duplicada minha responsabilidade. Eu estava condenado a fazer bonito na minha apresentação, talvez pelo fato de que eram raros os deficientes palestrantes (e, no caso, eu ainda me supunha um palestrante deficiente). Eu sentia muitos olhos me examinando, por vezes curiosos. Então chegou minha hora, no segundo ou terceiro dia do Encontro. Calculei minha cara mais inteligente, enverguei a camisa nova, segurei junto à muleta a pasta com minhas anotações, e lá fui.
   
No grande auditório não havia cadeira vaga. No palco, havia uma longa mesa ornada, ainda vazia, mas com os microfones já a postos. Encostei-me perto da porta, nervos controlados, aguardando socorro da intuição. O coordenador abriu a sessão, fez algumas considerações, e, logo, passou a convocar os palestrantes que, se não me engano, seriam quatro naquela tarde. Chamou o primeiro, logo depois o segundo. Eu seria o próximo, mas um calor se antecipou em meu peito. A intuição se intrometeu, me dando a grande pista. Bingo!!! Ouvi meu nome e desloquei-me em direção ao palco. Olhei, de um lado, a escada. Caminhei até o outro extremo. Escada também. Lá de baixo, ao nível das cadeiras, dirigi-me ao coordenador e disse algo assim: "em reverência política ao ano consagrado aos deficientes, e em protesto contra a falta de adaptação de um ambiente com tal destinação, vou me recusar a ser carregado. Estou reivindicando a descida da mesa para este nível, como ato simbólico de apoio à causa e às necessidades dos deficientes físicos". Evidentemente, essa foi uma fala emocionada, e sem a clareza bem articulada que aqui se apresenta com a escora da escrita e a auto-complacência da memória.
   
Um desajeito no ar, algum constrangimento, e logo aplausos e palavras de apoio. Muitos se apresentaram para ajudar na mudança da mesa e dos equipamentos. Criara-se um clima interessante, bom para se plantar coisas novas. Senti que tinha acertado num alvo que eu ainda não conseguia distinguir. Esse gesto também ativou em mim o impulso de militância. Eu que tinha tido até então, aqui e acolá, uma persistente mas discreta militância política, pressentia que nova frente de luta se abria naquela hora. Deficientes, seus direitos, sua cidadania, tais coisas dariam estofo para boa e digna luta? Ali tive certeza que sim, e sem planejar, me dispus a ela, dentro de minhas parcas possibilidades.
  
Duvido que alguém tenha saído daquele auditório mais tocado do que eu mesmo. Usei o ocorrido como gancho, e palestrei com o coração, com uma história que eu não suspeitava contida ali dentro. Contatos, trocas de endereços, os primeiros convites para encontros e outras palestras. Topei a briga, fiz do verbo a arma, circulei e falei muito nos 15 anos que se seguiram. Durante um bom tempo o episódio da mesa que desceu vinha à tona quando me apresentavam num evento ou numa reunião. Mais recentemente, quando a saúde andava trôpega, sobreveio desânimo e ceticismo. Falar mais o quê? Para quem? Meu tempo passou, soava clara a sentença. Mas o tal veneno é perene em seu contágio. Foi a conta de abrir um pouco a guarda, com a descoberta do blog, e ele se infiltrou sem disfarces. E me deixa aqui, assim, meio menino, brigando pela atenção de cada caro leitor.
  
Fala se ele não é lindo.  Fala!?